Esse artigo é apenas uma tentativa de montar o quebra-cabeça subjetivo e cheio de imagens que Cecília Meireles nos propõe  no poema “Mulher ao Espelho”.

O poema nos remete a uma viagem fantástica pelo universo feminino inserido na cultura ocidental.

Em seu corpus encontraremos um eu lírico feminino dividido em duas personalidades que se confrontam em um espaço e tempo determinados de maneira sutil.

Mulher ao espelho

Hoje, que seja esta ou aquela

pouco me importa.

Quero apenas parecer bela

Pois, seja qual for, estou morta.

_________________________

Já fui loura, já fui morena,

Já fui Margarida e Beatriz,

Já fui Maria e Madalena.

Só não pude ser como quis.

__________________________

Que mal faz, esta cor fingida

do meu cabelo, e do meu rosto,

se tudo é tinta: o mundo, a vida,

o contentamento, o desgosto?

_______________________________

Por fora, serei como queira,

a moda, que vai me matando.

Que me levem pele e caveira

ao nada, não me importa quando.

_______________________________

Mas quem viu, tão dilacerados,

olhos braços e sonhos seus,

e morreu pelos seus pecados

falará com Deus.

____________________________

Falará coberta de luzes,

Do alto penteado ao rubro artelho.

Porque uns expiram sobre cruzes,

Outros buscando –se no espelho

Análise do poema

O poema “Mulher ao Espelho” apresenta seis quartetos, com o esquema de rimas abab, sendo três rimas pobres e nove rimas ricas.

Ao analisar o poema como um todo percebemos que, a priori , a ideia central é a posição da mulher ocidental em sua cultura no decorrer da história. Logo após esse esboço feminista, que vai da primeira à quarta estrofe, o eu lírico invade um território mais transcendental e intrínseco a todo ser humano. Procuraremos demonstrar e embasar esta proposição analisando “Mulher ao Espelho” de uma maneira pormenorizada, com uma análise feita por estrofes.

No título do poema e em sua primeira estrofe observamos fatores importantíssimos para a sua análise que são os seguintes: o eu lírico é feminino e apresenta uma dualidade que pode ser observada por dois fatores. O primeiro é o título “Mulher ao Espelho” que nos indica o núcleo de sua interpretação.

Ao analisarmos o título percebemos que a palavra mulher reforça a ideia de um eu lírico feminino. O substantivo mulher, não acrescido de um artigo generaliza o sexo feminino personificado no eu lírico. No decorrer da análise demonstraremos que essa figura feminina generalizada passa a ser consubstanciada na mulher ocidental pela raça, nome e valores morais que apresenta. Ainda no título, a palavra espelho já indica uma dualidade do eu lírico que é tanto real quanto reflexo de um espelho que serve de metáfora ao universo social. Essa metáfora será explicada quando estivermos tratando da quarta estrofe.

No decorrer da primeira estrofe percebemos através do seu léxico que o eu lírico não deseja ser, mas apenas parecer bela, pois já está morta. Observe que esta morte não é física, mas ideológica e interior, fato observável na quarta estrofe, que será explicada mais adiante.

Na segunda estrofe o eu lírico apresenta alguns traços que nos remetem a mulheres ocidentais ou oriundas do ocidente. Os adjetivos loura e morena indicam características natas da etnia indo-européia e americana. Os nomes Margarida e Beatriz são de origem latina e os nomes Maria e Madalena são de origem semita, portanto todos nomes de origem ocidental. O último verso dessa estrofe também é importante, pois, demonstra a submissão da mulher frente a cultura a qual é inserida, observe-o:

(… Só não pude ser como quis…)

O eu lírico, no passar dos anos foi como Margarida, prenome comum no ocidente. Foi tão santa e paciente quanto Beatriz no paraíso de Dante. Foi tão pura como Maria, mãe de Jesus e tão profana quanto a personagem prostituta do texto bíblico, Madalena, porém o eu lírico não pôde ser como quis.

Analisado nesse ponto de vista, a segunda estrofe demonstra que há um tempo centrado no poema, e que esse tempo é demarcado por  nomes de personagens que marcaram uma época e ainda marcam até os dias de hoje.

Com exceção de Margarida, as outras personagens foram todas influenciadas pelo homem, embora sejam femininas. Ora são tidas como a mulher ideal, ora como a mulher profana mas sempre com característica impostas pela cultura e por vezes aceitas pelas mulheres.

Na terceira estrofe o eu lírico começa a demonstrar uma indiferença sobre o mundo que o cerca, o mundo externo, e essa indiferença será mudada na quarta e quinta estrofes, quando o eu lírico atinge a sua plenitude interior. A terceira estrofe é quase um tratado filosófico, o qual o eu lírico afirma  que todas as coisas são uma coisa só, ou seja, tudo é tinta.

A quarta estrofe traz elementos que nos faz retornar às estrofes anteriores e explicar o que talvez tenha ficado obscuro. Em primeiro lugar observemos que o poema é praticamente dividido em duas partes: a primeira parte vai da primeira à quarta estrofe, que demonstram a aceitação do eu lírico frente a cultura (espelho) a qual se insere e a segunda parte, que são as duas últimas estrofes e demonstram a plenitude que o eu lírico alcança frente ao mundo social e externo – a tinta citada na terceira estrofe.

O eu lírico começa a quarta estrofe afirmando que será como queira a moda, ou seja, o mundo externo, a cultura. Mas será dessa maneira apenas externamente, pois internamente já está morto. Essa moda, assim como afirma o eu lírico, o vai matando. Fato que explica a primeira estrofe, quando o eu lírico diz que está morto, porém, não fisicamente e externamente mas ideologicamente e interiormente.

A quinta estrofe e a sexta merecem uma atenção especial, pois trazem um sentido extraordinário para a conclusão do poema.

O eu lírico começa uma segunda proposição a partir da quinta estrofe apresentando um conectivo demonstrativo de adversidade, o qual nos indica que ele está contradizendo a sua primeira proposição e indicando a relação de causa e consequência entre ambas proposições, dizendo:

(… Mas quem viu tão dilacerados,

olhos, braços e sonhos seus,

e morreu pelos seus pecados,

falará com Deus…)

Devido a aceitação do eu lírico à suposta moda e a sua morte interior identificada como pecado, ele falará com Deus. Observe que nesta passagem temos mais um reforço para indicar que esse eu lírico tem traços ocidentais, devido a sua  crença na vida após a morte e a imagem do Deus, que permeiam a religião judaica e cristã.

Nos dois primeiros versos da última estrofe, o eu lírico feminino, como consequência da primeira proposição, falará com Deus, não maquiada ou com o cabelo tingido, mas falará coberta de luzes do cabelo aos pés. Isso indica que ela não precisará seguir mais a moda, pois já atingiu a sua plenitude.

Observe os dois últimos versos da última estrofe:

(… Porque uns expiram sobre cruzes,

outros, buscando-se no espelho…)

O eu lírico nos demonstra nesses versos dois tipos de pessoas claramente identificadas: os que expiram sobre cruzes e os que se buscam no espelho. No primeiro verso, expirar sobre cruzes, no sentido metafórico do poema, nos remete a morrer por uma causa, assim como Jesus e Sócrates morreram. No segundo verso, morrer buscando-se no espelho, nos remete a uma morte sem sentido como a própria morte do eu lírico demonstrada nos dois últimos versos.

Observe que o eu lírico termina o poema em um tom mais positivo do que começou, pois, afirma que todos irão morrer, tanto os que morrem sobre cruzes quanto os que se buscam no espelho. Tanto a mulher sempre submissa no ocidente quanto o homem, pois tudo é tinta, como o próprio eu lírico nos diz.

Luciano Aparecido Marques

Referências

MEIRELES, Cecília. Mar Absoluto – 1945

TAVARES, Hênio. Teoria Literária – 2002

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