Para onde vais, assim calado,
de olhos hirtos, quieto e deitado,
as mãos imóveis de cada lado?
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Tua longa barca desliza
por não sei que onda, límpida e lisa,
sem leme, sem vela, sem brisa…
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Passas por mim na órbita imensa
de uma secreta indiferença,
que qualquer pergunta dispensa.
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Desapareces do lado oposto
e, então, com súbito desgosto,
vejo que teu rosto é o meu rosto […]
Cecilia Meireles, Fantasma
Pedro tinha trinta e quatro anos e trabalhava como motorista de taxi. Sua vida era rotineira, sem muitas mudanças, apenas o entra e sai de passageiros, uma e outra discussão de trânsito e nada mais.
As ruas de São Paulo eram o seu ganha-pão, porém naquela noite, quando retornava da faculdade de medicina do ABC, onde tinha um ponto de taxi, ele foi abordado por um homem singular. O sujeito era possivelmente um professor universitário. Portava uma maleta social preta e vestia roupa social, terno preto e gravata borboleta azul. Ele tinha uma barba à Osama Bin Laden.
Pedro não havia ganhado muito naquele dia. Na parte da manhã teve de levar Sofia ao hospital – a pobrezinha sofria de asma e desde a morte da mãe adquiriu uma depressão muito aguda. Pedro gastava muito dinheiro com a filha.
_ Pois não meu senhor. Para onde será a corrida?
_ Eu quero ir para Monte Sião. Desculpe o meu português, eu ser americano.
_ Pois não meu senhor. Qual é o seu nome?
_ Meu nome é Smith, Adam Smith.
Pedro sabia que essa corrida lhe custaria pelo menos seis horas de viagem ida e volta, porém isso lhe salvaria o dia de trabalho fraco. Sem vacilar ele pediu para que o americano entrasse no carro e começou a pensar em Sofia. Ele a amava muito, principalmente porque ela o fazia se lembrar de Marisa, sua querida e falecida esposa .
Quem primeiro quebrou o silêncio foi o americano, que sussurrou algo parecido com isso:
_ Post mortem anima pulchra est. There the spirit is flagelum!
O homem falava consigo mesmo em tom de reza. Pedro conhecia o som de muitas línguas, embora não soubesse falar nenhuma, além do português. Ele sabia que aquele idioma não era o inglês. O sotaque era, mas as palavras não. Para quebrar o gelo, o taxista ligou o rádio e a música soou bem alto. Era uma música dos Beatles “All we need is Love”. Rapidamente ele abaixou o volume para não atrapalhar o americano, que, no entanto, reclamou em voz de lamento:
_ Turn it off, turn it off. Música do mal.
_ O senhor não gosta dos Beatles?
O gringo não respondeu e começou a entoar uma cantiga muito parecida com um canto gregoriano: “Ecce nomem Domini Emmanuel, quode annunciatur…”
Espantado, Pedro desligou o rádio, ignorou o gringo e voltou a pensar em Sofia. Aquele malabarismo nunca parava. O pensamento ia e vinha. Sofia, Marisa, Marisa, Sofia, Sofia. Marisa…
Meia hora depois e o taxi já havia entrado na Rodovia Fernão Dias. O trânsito fluía, aliás, fora do comum. Já era o cair da tarde e o céu estava vermelho rubro, num aspecto bem singular.
Não havia veículos de nenhuma natureza, apenas o taxi. Pedro começou a tremer, não sabia se de frio ou de medo. Olhou no retrovisor e viu aquela figura que espantosamente o fitava também. Afinal o que aquele americano fazia em SP naquela hora, e por que iria a Monte Sião? Que língua estranha ele falava?
Como todo bom taxista que é capaz de passar horas com um passageiro sem trocar uma palavra, Pedro se resignava ao silêncio, no entanto este cenário esta ficando funestamente carregado. Portanto, arriscou uma pergunta:
_ O senhor é padre?
_ Não, eu ser um mago.
_ Que língua o senhor falava há pouco?
_ Língua dos anjos.
_ Parecia italiano, ou latim.
_ Latim anglicano não ser apenas latim!
A última resposta soou retumbante como um último argumento de defesa utilizado pelo réu na tentativa de revogar uma sentença injusta.
Mais uma hora de estrada e neste instante ambos ficaram mudos. A estrada continuava vazia e algo fez com que Pedro sentisse um arrepio na espinha; um choro de lamento e dor, que aparentava ser de uma criança, quebrou o silêncio e entrou pela janela entreaberta. O cenário ficara fantasmagórico. Havia uma neblina densa e o grito se espalhava pelo ar, quando Sr. Smith falou:
_ Sofia sofre muito. Está com medo.
_ O que o senhor disse?
_ Asma matar. Medo matar.
_ Do que o senhor está falando? Quem é a Sofia?
_ Sua filha está no porta-malas.
Ao ouvir essas palavras, Pedro parou o carro no acostamento e se dirigiu ao porta-malas. Fazia um frio inexplicável. Era um frio que cortava a pele e a alma. O taxista tentava abrir o porta-malas, mas não conseguia. Pensou em pedir ajuda, mas a quem? Não havia um carro sequer na estrada. Ao seu redor apenas escuridão e medo. Suava feito um porco no abate. Começou a chorar. Seu pensamento vacilava entre Sofia e Marisa. Perdeu as forças e mal conseguia andar.
Foi neste instante que Pedro sentiu um ódio indescritível do americano e pensou em matá-lo. Conseguiu abrir o porta-malas e viu que não havia nada, exceto suas ferramentas. Dirigiu-se ao banco do passageiro e gritou:
_ Quem é você, seu filho da p.?
Antes de terminar a frase o taxista teve uma surpresa que o fez saltar para trás. Não era o senhor Smith quem estava no banco do passageiro, era Marisa com seu olhos verdes e cabelos loiros e cacheados. Com aquela voz macia, que sempre o conduzia, ela disse:
_ Agora ficaremos juntos para sempre.
Em transe e sem poder respirar, Pedro correu ao capô do carro e percebeu que ele estava fechado novamente. O choro rancoroso cortou o espaço e ele tentou reabrir o porta-malas, quando sentiu em suas costas o peso de uma mão gélida. Ao virar-se, o capô abriu atrás de si e ele viu em sua frente Marisa que se preparava para beijá-lo.
Pedro estava prestes a se entregar àquela que ele pensava ser a morte, porém uma mão quente o tocou de dentro do capô e disse:
_ Papai, papai?!
Pedro acordou em um hospital. Sofia estava ao seu lado segurando sua mão e sua avó, dona Fátima conversava com um policial e um senhor de cabelo grisalho, que tinha um sotaque inglês. A testemunha relatava o que acontecera:
_ Então senhores, ele desviou do mendigo e bateu no poste…
O taxista não podia falar, mas compreendia o que os outros diziam ao redor. Ele olhava para Sofia e chorava. Foi então que percebeu que no quarto havia mais uma pessoa e ao redor do sujeito três figuras: um padre e duas senhoras. O homem acamado era um senhor com barbas longas e aspecto taciturno.
O padre balbuciava alguma reza em latim e as mulheres choravam sem parar. Era sem dúvida uma cena muito funesta. Por fim outro médico entrou, dirigiu-se ao paciente acamado, examinou o moribundo, anotou alguma coisa em uma prancheta e pediu para que todos saíssem do quarto por um instante, exceto o padre e as duas senhoras. Então em voz de lamento o doutor informou ao séquito:
_ Infelizmente ele não resistiu. Já podemos avisar a família.
Uma das senhoras chorava muito enquanto a outra, mais controlada disse ao médico:
_ Doutor, ele vai ser enterrado em Monte Sião.
_ Senhora, a remoção do corpo e todo o processo funerário a senhora deve averiguar naquele guichê à direita. Em caso de dúvidas procurem nossa assistente social no primeiro andar.
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