Desde a primeira vez que Júlio viu o senhor Kokot, ele achou aquela figura muito estranha. O velho vivia engomado, se escondendo dentro de um sobretudo preto e usava uma cartola bem alta. Quem usa um artefato desses em pleno século XXI? Não importa o quão estranho a figura parecia, o fato é que ele era o único da velha casa ao lado que cumprimentava Júlio em encontros esporádicos.

Assim ocorreu na primeira vez em que Júlio cruzou o caminho do velho:

_ Bom dia, Senhor! Hoje o tempo está bom, não é?

_ Está um pouco abafado, meu filho, mas a minha doença me impossibilita de expor a pele ao sol e usar uma roupa mais fresca.

Júlio fitou o velho de forma inquisitiva, procurando saber em sua memória fotográfica se conhecia alguma doença que impossibilitasse alguém de tomar sol, não lembrou de nenhuma e continuou a conversa.

_ Faz tempo que o Senhor mora nesse condomínio?

_ Eu sou um dos primeiros moradores. Muitos vão e vem, mas a minha família já está aqui desde a década de 40. Meus pais construíram essas duas casas antes do condomínio.

Além da peculiar roupa de preto e a cartola imponente, o velho usava um par de óculos escuro bem moderno para a sua idade. Um belíssimo modelo ray-ban daqueles usados na década de oitenta. O sujeito também portava uma bengala, cujo castão parecia ter o formato de uma gárgula de ouro.

_ A propósito, meu jovem, é um prazer em conhecê-lo, meu nome é Jan Kokot, mas você pode me chamar de velho Kokot.

_ O prazer é todo meu, senhor Kokot. Preciso começar a minha caminhada agora. Até logo!

_ Se precisar de algo, pode contar comigo. Minha família é meio tímida, mas logo você se acostuma com eles. Até logo.

O velho se despediu e começou a caminhar a passos muito lentos em direção à calçada que margeava um belíssimo jardim sazonal. Júlio pegou o mesmo caminho, mas acelerou muito na frente do sr. Kokot. A manhã estava quente e não havia ninguém acordado naquele horário.

Júlio havia se mudado a trabalho para aquele condomínio na Borda da Mata há duas semanas e sua casa era emparelhada com a da família Kokot. No dia da escolha do imóvel, Júlio e a esposa tiveram a opção de escolher entre cinco casas de aluguel, no entanto, a que escolheram era escandalosamente a mais barata do condomínio, chegando à metade do preço, afinal eles iriam passar apenas um mês naquela região de Minas Gerais.

A casa em questão ficava na parte mais distante da entrada do condomínio, há uns dois quilômetros de distância. Segundo o corretor, as duas casas foram as primeiras a serem construídas e não faziam parte do condomínio até a década de sessenta em que ele foi ampliado. Os proprietários concordaram em vender o terreno, porém, as casas mais velhas deveriam sempre se manter intactas e o casarão continuaria sendo propriedade da família Kokot, que concordava em alugar uma das residências por um preço mais barato.

Júlio deu a volta inteira no quarteirão encontrando as casas mais próximas da construção nova que margeavam o jardim. Para a sua surpresa, encontrou o senhor Kokot, e o que viu o deixou espantado, o velho andara quase oitocentos metros! Como ele poderia ter feito isso em tão pouco tempo? Júlio guardou esse detalhe para si e não compartilhou com ninguém – aquilo seria maluquice da sua cabeça!

Um mês após o encontro, e na véspera de deixar a casa e retornar para São Paulo, Júlio ficou apreensivo com uma notícia espantosa. Ao sair para a sua caminhada matinal, encontrou algumas pessoas em frente à casa do sr. Kokot, o que não era muito normal. Eram uma dúzia de sujeitos muito esguios e altos vestindo roupas de gala. Algumas mulheres choravam, enquanto as crianças ignoravam a todos.

Júlio fez a sua caminhada e voltou após os habituais trinta minutos. Ao se dirigir à garagem, foi interpelado por um dos filhos do senhor Kokot, um homem peculiar que nunca havia conversado com Júlio antes.

_ Senhor, desculpe interrompê-lo, mas acho que o senhor precisa saber que o meu pai faleceu na noite passada e iremos velar o seu corpo nessa tarde aqui em casa. O senhor era a única pessoa com quem ele conversava, então achei importante avisá-lo.

Júlio ficou surpreso com a morte de Kokot, e expressou suas condolências ao filho afirmando que iriam ao velório de Kokot, sem dúvida.

Júlio voltou à sua casa e encontrou a esposa Vanessa dormindo. Foi ao chuveiro e tomou banho enquanto a água do café esquentava. Tomou o seu café matinal e respondeu alguns e-mails. O relógio soava 9:00 da manhã. E o sábado estava muito agradável para ficar dormindo até tarde, então Júlio se deitou ao lado da esposa e começou a chamá-la.

_ Amor, amor… Deu duas mordiscadas na orelha direita da esposa. Acorda, o dia está maravilhoso, sussurrou em seu ouvido.

Vanessa acordou muito excitada com aquela abordagem. Os dois fizeram amor e deitaram-se um ao lado do outro por alguns minutos. Vanessa deitou-se com a cabeça sobre o peitoral de Júlio que disse apreensivo:

_ Vanessa, não podemos voltar hoje.

_ Como assim, Júlio? Precisamos ir para São Paulo hoje!

Júlio sabia que a esposa estava muito ansiosa para voltar ao apartamento em São Paulo, onde deixara os pais cuidando de tudo até voltarem.

Vanessa sentou-se na cama esperando uma explicação sobre o fato de terem de passar mais uma noite naquele lugar. A verdade é que ela não gostava daquela casa, pois relatara diversas vezes ter visto vultos e ouvido sons estranhos em vários locais, principalmente no sótão.

_ O senhor Kokot faleceu na noite passada e precisamos ir ao velório. É um sinal de respeito, explicou Júlio.

Vanessa pôs-se a chorar e disse:

_ Respeito com quem? Essa família é maluca! Ninguém dá atenção a nós. As crianças vivem gritando e correndo! Ou você esqueceu das noites em que passamos em claro por causa daquele violino infernal! Eu vou embora hoje, se você quiser ficar é um problema seu!

_ Eu já lhe disse que essas ideias são fruto de sua imaginação. Isso é o efeito da saudade de seus pais, mas logo estaremos juntos. O senhor Kokot me ajudou muito nesses tempos difíceis!

A mulher continuou a tentar dissuadir o marido daquela ideia maluca de ir ao velório de um desconhecido, mas Júlio possuía aquele caráter irresoluto dos imperadores romanos e a esposa teve de ceder.

Às 22:00 horas, a campainha dos Kokot soou. Uma criança com olhar distante abriu a porta. Júlio e Vanessa entraram na casa.

Toda a cena lúgubre se resumia a um cômodo. Nas paredes havia vários retratos de família pintados a óleo. O solo era de taco de carvalho e havia um carpete muito pomposo no centro da sala de estar. Tratava-se de um artefato belíssimo decorado com arabescos moiros.    

Um rapaz muito alto e pálido tocou o ombro de Júlio com sua mão direita e disse:

_ Meu pai ficaria feliz em saber que o senhor e sua esposa vieram. Agradecemos por sua presença nesse momento triste.

Prontamente o casal desejou ao homem suas condolências. A cena era funesta. Uma mulher muito velha passava pela sala de tempos em tempos com uma bandeja de cristal repleta de quitutes e bebidas que eram servidos aos convidados, que contavam com aproximadamente umas vinte pessoas, todas bem vestidas em trajes de gala.

No meio da sala estava o caixão de carvalho do senhor Kokot, que era decorado com insígnias que Júlio não compreendia, exceto pelos símbolos judaicos presentes não apenas no caixão, mas em todo o cômodo: Menorás, estrelas de Davi e um shofar pendurado na parede atrás do cadáver completavam a cena.

Vanessa estava completamente desconfortável e ao contrário de Júlio, era muito religiosa. Sempre trazia em sua bolsa o terço de madrepérolas que ganhara de sua madrinha de batismo.

O casal procurava se enturmar para não ficarem tão deslocados. Iam passando pelas pessoas enlutadas e prestavam suas condolências.

A noite se estendia e parecia que o casal estava sob alguma espécie de hipnose, pois não perceberam que o antigo relógio de pêndulo acabara de soar doze badaladas. Como puderam ficar naquele lugar por aproximadamente duas horas sem perceber?

Júlio fez menção de se despedir do séquito e se deu conta de que não havia olhado para o defunto ainda. O casal se aproximou do caixão e tiveram uma surpresa. O caixão estava vazio!

Da escadaria lateral começaram a descer algumas pessoas. Júlio reconheceu o corretor de imóveis e alguns moradores do condomínio que ele já havia visto algumas vezes.

Vanessa, Júlio, o corretor de imóveis e os outros moradores foram acuados no centro da sala, ao lado do caixão. O séquito de gala foi se aproximando. Seus olhos ficaram vermelhos, suas bocas se abriram e era possível ver presas salientes saltando de suas gengivas protuberantes.

Senhor Kokot gritou de forma bestial:

_ Hora do jantar, irmãos!

Todos os convivas se atiraram contra as vítimas que estavam em transe. A única que parecia estar em si era Vanessa que agarrou seu terço e saiu correndo pela sala ignorada por todos. Atravessou a porta de entrada, correu para a sua casa, entrou no carro estacionado em frente ao jardim e saiu em disparada.

Luciano Aparecido Marques.

3 comentários em “Velório de sangue

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