Pecar pelo silêncio, quando se deveria protestar, transforma homens em covardes.
Qualquer proposição filosófica deve seguir uma linha mestra concatenada com fatos anteriores de modo que possa formar um corpo de raciocínio lógico e irrefutável ou pelo menos inquestionável. Mesmo que haja falácias ou até mesmo incoerência de fatos é preciso seguir uma linha de raciocínio lógico até o fim.
Era deste modo que Lucas conduzia seu pensamento. Sujeito de poucas palavras, muitas ideias e alguma atitude. Pensava, por exemplo, que a terra iria se vingar de todos os maus tratos de que vinha sofrendo. Tinha essa teoria de que para cada folha de árvore, cada gota de água ou qualquer que seja o fruto da natureza desperdiçado de forma voluntária, outro fator orgânico se insurgia como efeito de defesa.
Certa vez, Lucas explicou aos amigos de boteco que o vírus da dengue teria sido criado como defesa pela destruição dos rios. O Aedes viera tal como Moisés, das águas para a libertação de seu povo sofrido e explorado pela escravidão.
No entanto, entre um absurdo e outro, o sujeito tinha uma espécie de tratado filosófico, uma suma que aspirava a responder todas as questões práticas. Porém toda essa sabedoria perpétua estava em sua cabeça, afinal o sujeito mal sabia escrever o nome. Sua obra literária resumia-se a bilhetes de recado e anotações de compras.
Outro dia estava a trabalhar no turno da noite com seus dois amigos, Faísca e Língua de Cobra. Do primeiro gostava, por ser ligeiro e prestativo, enquanto que sobre o segundo, tinha o sentimento amargo do ódio, pois era fofoqueiro e adorava tirar vantagem das situações e ludibriar ingênuos.
Trabalhavam os três no carregamento de caminhões no galpão sete da empresa de bebidas Odre Néctar. Foi entre uma garrafa e outra durante os turnos que Lucas adquirira o vício do álcool.
Naquela noite não bebera, porém Língua de Cobra e Faísca deram uns goles às escondidas. Lucas operava a ponte rolante enquanto Faísca dirigia a empilhadeira e Língua de Cobra acoplava e desacoplava os ganchos da ponte rolante e com isso carregava os caminhões. Lucas e Língua de Cobra não se falavam, devido a uma briga, fruto de conversa fiada; o boato era de que Lucas havia sido traído pela esposa. Ele que era o único do setor a não ter apelido, agora ganhara o nome de batismo, Galha. Ninguém ousava chamá-lo de tal alcunha por medo de represália.
Lucas já havia matado o sujeito que desvirginara sua irmã, pelo menos, assim ele contava. Foi no canavial. Lucas tinha doze anos e o sujeito, um tal de Alencar tinha dezenove. Sua irmã contava com quinze anos. Quando Lucas soube do acontecido tratou de empurrar o infeliz dentro da máquina de moer cana de seu Ernesto. Saiu gritando e chamou pelos pais. No relato disse que encontrou o defunto moído dentro da máquina.
Voltemos ao galpão. Este era a cenário: o último caminhão a ser carregado era vermelho e tinha uma carroceria irregular com tábuas pregadas no assoalho desgastado pelo tempo. Língua de Cobra estava alegre e falando mal de todos os ausentes ao passo que elogiava os presentes. Já estava um pouco bêbado, quando involuntariamente chamou Lucas pelo apelido. Este que já sabia da alcunha, porém fingia ignorá-la pra que o apelido não pegasse, viu nesta hora a oportunidade de se livrar daquele verme.
Ele teria apenas três chances. Havia mais três caixas de bebida a serem carregadas e o galpão tinha duzentos metros de cumprimento. Nesta ocasião, Faísca estava em uma extremidade do galpão acoplando ganchos e Língua de Cobra na outra descarregando a carga sobre o caminhão, enquanto Lucas espiava tudo de dentro da cabine da ponte rolante. Fez a primeira viagem após a decisão de extirpar o verme linguarudo e mediu todas as possibilidades e consequências do ato. Se despejasse a mercadoria sobre a cabeça do sujeito seria culpado pelo crime. Se tentasse esmagá-lo contra a carroceria, sofreria as mesmas consequências.
Realizou a primeira viagem e agora só tinha duas chances, porém contava com dois possíveis empecilhos: primeiro, o turno da manhã já estava para entrar no galpão, às 7:00, no entanto os primeiros funcionários costumavam chegar às 6:30 e o relógio já marcava 6:15h. O segundo empecilho era aquele do início desta narrativa de que Lucas contava com muitas ideias, poucas palavras e alguma atitude. Esta atitude costuma aparecer quando o pobre já tem esgotado o limite da paciência, que em seu caso era quase infinito.
Fez a segunda viagem e olhou bem para o Língua de Cobra, calculou exatamente como seria o golpe: viria com o fardo de bebida a meia altura e lançaria a mercadoria contra o verme repulsivo do fofoqueiro que tombaria para dentro da baia de caminhões, com muita sorte ele bateria a cabeça e morreria ou ficaria paraplégico. Depois da ação ele seria levado ao hospital e o doutor falaria o seu nome: Manuel Pereira Gonçalo de Magalhães, horário da morte 9:00, ou seria às 10:00? Não importa, uma vez que ele morra, está tudo resolvido.
Chegou a hora. Arranjou todos os cálculos que havia feito e se preparou para o plano final. Mas onde está o desgraçado? Fora ao banheiro. Dez minutos depois voltou ao caminhão com mais cinco colegas falando mal de tudo e de todos, exceto dos presentes. Na saída os três trabalhadores do turno da noite tomaram café juntos no restaurante da empresa, foram ao vestiário se trocarem e por fim cada qual pegou seu carro e foram para suas casas. Agora demoraria aproximadamente um ano para que Lucas pudesse tomar alguma outra atitude.
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Luciano Aparecido Marques.