O que importa?

Da janela o doente via os passantes.

E acima os raios da luz artificial.

Dentro de si, treva existencial!

Não rememorava os dias de antes

Também não desejava riquezas

À esquerda aparelhos

À frente enfermeiros

Que falavam de carreiras

Trilha sonora? Um bipe infinito!

O médico presente toma nota

O anestesista conta uma anedota

E o moribundo jaz acolá

Desejando apenas ouvir Mozart

E com sua mãe

Tomar uma chícara de chá.

Luciano Marques

Concerto de bem-te-vi em sol maior

De manhãzinha o bem-te-vi se despojou a cantar

O sol resolveu aparecer e o galo já estava cansado

A vila dos homens não via mais do que dentro de si

Uma flor esquecida desabrochou na tez verde do caule

O tempo caminhou como se fosse a aurora da criação

Tão imparcial ao universo que os homens chegaram a temer

A vida continuou ignorando o passar do tempo

E de quando em quando o bem-te-vi em um timbre todo seu

Tocou o tema principal até que o véu da noite cobriu o sol

Luciano Marques

A última lembrança da partida

Aprendas a conviver consigo mesmo

É a melhor coisa que podes fazer!

Não é um ato egoísta

Mas um treino altruísta

Para o próprio bem do ser

Pois no fim dos tempos,

Quando atingires a quintescência

E o céu engolir o momento

Estarás tu e tua consciência

E a última lembrança que carregares no fundo do peito

Será para ti consolo ou desespero.

Luciano Aparecido Marques

A arbitrariedade do signo linguístico: um mergulho em Borges.

No ano de 2003 eu me deparei pela primeira vez com o termo saussuriano da “arbitrariedade do signo”. Para mim foi estranhíssimo entender o que esse conceito significava em sua totalidade, e a princípio eu o entendi como qualquer marinheiro de primeira viagem o faria: o signo linguístico e a realidade física não tem relação entre si.

Pois bem, essa primeira conclusão simplista levou-me a crer que Saussure não havia proposto nada além do óbvio e, mesmo após a leitura do Curso de Linguística Geral o termo não se clarificou, no entanto, anos mais tarde, ao ler um artigo do linguista Rodolfo Ilari, as minhas impressões começaram a se modificar.

O conteúdo linguístico não possui relação com a forma, e mais do que isso, a própria estruturação do mundo por meio da linguagem não se dá da mesma maneira, de modo que um conceito cuja origem possui um embrião cultural próprio, não terá a mesma carga semântica em outro idioma.

[…cada língua organiza seus signos através de uma complexa rede de relações que não será reencontrada em nenhuma outra língua.] Ilari.

Postas essas primeiras elucubrações veremos alguns trechos de um conto metafísico belíssimo de Jorge Luís Borges que ilustra bem o conceito saussuriano. Trata-se do conto “Tlön, uqpar orbis tertius” que se encontra na coleção do autor intitulada “Ficções”. O texto possui desde o início um tom metafísico e a principio autobiográfico, porém, ao lê-lo constatamos que o narrador mistura a ficção à uma certa realidade que se descortina em forma de relato.

Em dado momento, o narrador e seu amigo procuram por uma enciclopédia britânica que possui uma citação que fora dita por um deles, mas que é descreditada pelo outro. A suposta citação faz menção a um povo lendário, mas que segundo um dos amigos que teria lido a tal enciclopédia, o fato seria verídico. Após certas idas e vindas em busca da tal enciclopédia, o narrador consegue uma cópia que não apenas trás a citação que gerara a busca, mas também encontra certos fatos narrativos acerca dos povos dessa tal terra mística. Em dado momento o narrador trás o seguinte relato:

“Não há substantivos na conjectural Urprache de Tlön, da qual procedem os idiomas atuais e os dialetos: há verbos impessoais, qualificados por sufixos (ou prefixos) monossilábicos de valor adverbial. Por exemplo: não há palavra que corresponda à palavra lua, mas há um verbo que seria em espanhol lunecer ou lunar. ‘Surgiu a lua sobre o rio’ se diz ‘hlör u fang axaxaxas mlö’, ou seja, na ordem: ‘para cima (upward) atrás duradouro-fluir lunesceu’.”

Observem que para não falar uma determinada frase, cujo paradigma sintagmático seria: sujeito – verbo – predicado, a lógica do sistema indo-europeu se fragmenta. Não obstante a falta de lógica estrutural, a própria “imago mundi” se perde, uma vez que na conjectura Uprache, como o próprio narrador ilustra em outra parte “o mundo para eles não é um concurso de objetos no espaço; é uma série de atos independentes.

Em outro trecho do conto, o narrador nos apresenta um exemplo de outro idioma falado em uma região denominada “hemisfério boreal”:

[…] a célula primordial não é o verbo, mas o adjetivo monossilábico. O substantivo é formado pelo acúmulo de adjetivos. Não se diz lua: diz-se ‘aéreo-claro sobre redondo escuro’ ou ‘alaranjado-tênue-do-céu’ ou qualquer outra composição.

Observemos que neste segundo caso o falante de tal idioma teria como “imago mundi” os adjetivos de modo primordial, enquanto que o falante do primeiro exemplo a teria enquanto verbo. Para o primeiro grupo, as qualidades seriam os fenômenos preponderantes da realidade, ao passo que para o segundo seria a ação.

Por fim, essa pequena análise sugere que a formação linguístico-cultural de cada língua possui o seu próprio mecanismo de analisar a realidade, de modo que a linguagem expande mas também limita a visão de mundo do ser humano.

Luciano Aparecido Marques

BENTES, Anna Christina, MUSSALIM, Fernanda, organizadoras. Introdução à linguística. Fundamentos epistemológicos. 5. ed. – São Paulo: Cortez, 2011.

BORGES, Jorge Luis. Ficções. São Paulo. 2007. Companhia das Letras.

Em uma biblioteca medieval – um cristão e um budista

Foto por Rodolfo Clix em Pexels.com

Sentado no centro da ante sala

Que dava de frente ao corredor Norte

Em posição de lótus ele estava

Altivo, com semblante puro e nobre

Aproximou-se o frade cristão

Sob o fluxo do silêncio sagrado

E o monge despertando então

Recebeu o amigo de bom grado

_ Vês o imenso número de livros?

Quase todo o conhecimento humano

Escritos nessas tábuas e papiros

Tudo pura vaidade e engano

Perceba esse silêncio que emana

Aqui é onde eu busco o meu refúgio

Dessa calma virá o meu nirvana

Conte-me pois, seu segredo profundo.

Foto por Jonathan Borba em Pexels.com

_ O que dizer a ti de antemão?

Nem tudo o que sou está na mente

Não posso perscrutar o coração

Também não compreendo o que ele sente

Mas sinto algo valioso e bom

Há lugares a que não tenho acesso

Um jardim onde a rosa de Sarom

Brotou desde o princípio do universo

Deus Pai, Filho e Espírito Santo

Cuidam do jardim em uma Pessoa

De lá Nossa Senhora entoa um canto

Que na alma do orante ressoa

Como se não bastasse tal beleza,

Jesus, que sofreu tanto no calvário

Lá exerce poder e realeza

Que sentimos na conta do Rosário.

Luciano Aparecido Marques

A grande lei da causalidade

De quem é esse tempo?

Não seria das flores?

Ou de todas as dores

Cujo triste lamento

Ocultado na alma

Corrói a santa calma

E destrói o momento

Conferindo ao destino

As mazelas do corpo

Como se houvesse porto

Em que todo o ferido

Por sua própria rudeza

Retornasse ao início

Onde todo o vício

Encontraria a pureza?

Não é assim, meu caro

A natureza cobra

O que ato aprova

E a falta de amparo

Porque se desencanta

O estado atual

Vem d’um mundo no qual

Colhe-se o que se planta.

Mesmo que seja incrível

Mas de um ato inocente

O corpo ainda sente

Tal lei irredutível!

….

Luciano Aparecido Marques

Cronos e o desejo

Depois eu faço

Amanhã eu terei tempo

Agora estou alimentando a minha demanda hormonal

Quando eu terminar essa ação tão esquematicamente normal

Eu direi a mim mesmo:

_Que embaraço!

Porque não consigo?

Tal como o discípulo afirmou

Ser difícil fazer aquilo que é preciso em detrimento do que eu quero

Sei o que devo realizar, mas coloco na frente a imediata vontade estéril

Dessa forma me torno quem sou

E não o que preciso.

E assim passa-se o tempo

Jocoso e tenaz, mas maquinalmente sádico

Pois quando termina a aurora do desejo encravado na alma

Ele sai indiferente rumo ao infinito e com toda calma

Nos deixa perdidos no presente trágico

No qual perdemos o momento

Luciano Aparecido Marques