Perguntas
“Diz-me, porque não nasci igual aos outros,
sem dúvidas,
sem desejos de impossível?
E é isso que me traz sempre desvairada,
incompatível com a vida que toda a gente vive.”Florbela Espanca
Meu sobrinho Ricardo veio passar uns dias conosco em São Paulo. Quatro cômodos e uma mini lavanderia que eu não considerava um cômodo, era o espaço confinado que o pobre teria para brincar longe dos pais. Logo quando o garoto chegou já notei um ar de desconfiança e medo quando fui pegá-lo pelo braço e o bichinho se esquivou com um movimento abrupto, como se esperasse um solavanco ou pancada na cabeça.
_ Que é isso Ricardo, está com medo de quê?
Seu olhar me lembrava o pai, Rubião das Neves. Nome absurdo para alguém que entre um gole e outro trabalha na roça sob um calor escaldante, especialmente no verão mineiro de Pouso Alegre.
No elevador, notei que Ricardo permaneceu os dez andares assustado e acuado em um canto – não era apenas um confinamento geográfico, mas um cárcere psicológico, da alma. Eu não lidava muito bem com crianças, elas não me agradavam e eu contribuía na mesma amarga indiferença. Arrisquei:
_ Como vai a Rosa Maria, filho.
_ Minha mãe vai bem.
_ E o Rubião?
_ Eu não sei, não.
Chegamos. Joelma era só mimos com o menino. Dizia que o garoto era a cara do pai – e parecia mesmo. Era por volta das dez horas quando perguntou se o menino queria comer. Diabos! É claro que o menino iria querer.
_ Quero não, tia. Eu já comi na rodoviária. Quero tomar banho.
O menino falava, mas não olhava nos olhos. Estranhamente fitava a porta. Após alguns minutos de conversa entre o menino e minha esposa, presenciei uma cena perturbadora. Joelma se ofereceu para pegar a mala do menino, mas levou um tabefe na mão. Sim, um tabefe, mas não um tapinha de leve, foi um verdadeiro tabefe daqueles de virar figurinha na mesa.
_ Ai, Ricardo! Que isso, menino?! Joelma falou em tom lacrimoso. Não esperava aquela reação.
_O homem é quem leva a mala, tia.
Por fim, minha esposa achou graça:
_ Mas é o Rubião escrito!
Pairou um silêncio de aproximadamente trinta segundos que pareceram um mês. Fiquei muito irritado, com vontade de dar uns cascudos no moleque. Foi quando quebrei o silêncio e disse autoritário:
_ Ricardo, pegue suas coisas e vai tomar banho logo!
O menino não respondeu verbalmente, mas de prontidão pegou a mochila e de um salto entrou no banheiro. Durante o banho do menino houve um debate entre minha esposa e eu acerca do temperamento do menino. Era um absurdo um menino de doze anos querer mandar em alguma coisa. Um moleque que nem tinha saído do ovo ainda! Foi quase uma tese de doutorado em argumentações. A conclusão de minha esposa era de que o menino sentia saudade dos pais. Bobagem!
Minha cozinha era simples. Havia um fogão pequeno embutido na pia, feita sob medida e de mármore, uma geladeira média e branca e uma fruteira. Ao lado da fruteira havia uma adega dessas que pedimos na lista de casamento, mas nunca ganhamos. No entanto, tio Antônio resolveu me presentear com este artefato, talvez porque fosse adepto a tomar uma branquinha de vez em quando. Enfim, a mesa de jantar ficava na sala, que era mais ampla, afinal um apartamento, como dizem por aqui, é na verdade um “aperta mento”.
Já eram quase onze horas quando Ricardo se apresentou na sala, agora trocado e perfumado – a casca era limpa e calma, mas a alma ainda continuava misteriosamente encarcerada e turva.
_ Tio, você não trabalha?
Que pergunta mais absurda, é claro que eu trabalhava e não devia explicações a um pirralho, mas mesmo assim expliquei que estava de férias. Enquanto conversávamos na sala, Joelma preparava o almoço. Camarão na moranga, meu prato favorito. Eu não entendo porque ela só preparava minha iguaria favorita quando havia visitas. Parece que todos eram mais importantes do que eu.
_ Meninos, a mesa já está posta. Vamos comer?
Na mesa o menino se embestou a perguntar.
_Tio, você não bebe? Quer que eu pegue a garrafa na adega?
_ Não, obrigado. Como você sabe que temos uma adega.
_ Eu reparei quando cheguei.
_ Tia, você não põe a comida do tio?
_ Ele já é grande e se vira sozinho.
_ Não concordo, é a mulher que tem de fazer isso.
Sem saber o que falar, minha esposa olhou para mim como se esperasse uma defesa, foi então que eu reparei que a cor da mesa tinha o mesmo tom castanho de seus olhos que também pareciam com os de Ricardo. Cheguei a conclusão de que o que une a família é a cor e o brilho dos olhos.
_ Cada um coloca a sua comida se puder. Respondi após alguns segundos.
Retirei-me da presença do menino com a desculpa de alimentar o gato, Sultão. Demorei quase vinte minutos para abrir o saco de ração do gato e colocá-lo em seu pote. Também providenciei água e troquei a areia de suas fezes. Costumava fazer tudo isso em dez minutos, porém naquela ocasião levei aproximadamente meia hora, calculando o tempo de o menino terminar de comer e sair da mesa, mas foi inútil. Ao voltar encontrei o menino fazendo mais perguntas e Joelma com aquele olhar de reprovação que eu reconhecia há quilômetros.
Lembro-me da primeira vez que eu vira o menino. Uma coisinha mirrada que parecia que não iria vingar. Foi no natal de 2000. Era virada do milênio e estávamos na praça central de Pouso Alegre. Esperávamos os fogos de artifício. Alguns achavam que o mundo iria acabar, outros tinham certeza disso, como Rosa Maria.
Os planos, a faculdade, a viagem para a Europa, a gravidez indesejada de Ricardo anulavam todos aqueles sonhos, mas ainda deixava o amor materno.
Rubião era só braços e tatuagens. Havia aquele dragão que Rosa dizia ser coisa feia.
_ Mas você cala essa boca que das minhas coisas cuido eu! Resmungava o bruto na frente de todos e do próprio recém nascido, herdeiro do abandono: Ricardo Rosa Neves.
Depois do jantar, outra pergunta:
_ Tio, você gosta de seu nome?
_ Sim menino, por que a pergunta?
_ Eu odeio o meu, parece nome de mulher.
Expliquei que nome era coisa de família e que no futuro ele poderia trocar se quisesse. Joelma me repreendeu:
_ Não encoraje o menino com suas bobagens, criatura!
Após o almoço, passamos o dia tranqüilos e a diversão do garoto era acariciar o Sultão. Era um siamês preto muito bonito e bem cuidado, o filho que eu não podia nem queria ter. Vivia sujando a casa com pêlos e sempre recebia em troca afagos e carinhos. Quanto a mim, se ficasse sem camisa por um instante era excomungado por Joelma com impropérios, dos quais o mais poético era:
_ Não vê que a casa enche de pêlos?! Ponha uma camiseta, homem!
A noite chegou. Para mim a hora mais bela do dia. A hora do silêncio, do aconchego, da paz merecida. Eu costumava dormir às duas horas da manhã, mas naquela ocasião, fui deitar-me antes de todos. Passei pelo quarto destinado ao filho que nunca teríamos e vi que o colchão do meu sobrinho já estava pronto para que ele dormisse. Deixei Sultão, minha esposa e o menino na sala assistindo televisão, fui ao meu quarto e atirei-me sobre cama.
Tive um sonho ruim – pessoas sendo perseguidas por um louco com um martelo na mão. Elas gritavam tanto que eu acordei. Joelma ao meu lado dormia tão profundamente que parecia uma defunta. Então, ouvi um grito de verdade vindo do quarto onde estava Ricardo. Corri e encontrei a cena a seguir: a janela estava aberta, uma garoa fina entrava pelo quarto e Ricardo estava de pé olhando para fora. Acendi a luz e chamei o garoto. Percebi aquele mesmo olhar de alma encarcerada da cor da mesa da cozinha
_ O que você está fazendo? São três horas da manhã!
Olhei para suas mãos, uma delas estava sangrando com um corte profundo que deslizava do antebraço ao pulso. Era uma linha reta. Ele olhou para mim e disse: _Tio, o Sultão caiu. Eu tentei segurar, mas ele caiu.
Luciano Aparecido Marques