O que importa?

Da janela o doente via os passantes.

E acima os raios da luz artificial.

Dentro de si, treva existencial!

Não rememorava os dias de antes

Também não desejava riquezas

À esquerda aparelhos

À frente enfermeiros

Que falavam de carreiras

Trilha sonora? Um bipe infinito!

O médico presente toma nota

O anestesista conta uma anedota

E o moribundo jaz acolá

Desejando apenas ouvir Mozart

E com sua mãe

Tomar uma chícara de chá.

Luciano Marques

Concerto de bem-te-vi em sol maior

De manhãzinha o bem-te-vi se despojou a cantar

O sol resolveu aparecer e o galo já estava cansado

A vila dos homens não via mais do que dentro de si

Uma flor esquecida desabrochou na tez verde do caule

O tempo caminhou como se fosse a aurora da criação

Tão imparcial ao universo que os homens chegaram a temer

A vida continuou ignorando o passar do tempo

E de quando em quando o bem-te-vi em um timbre todo seu

Tocou o tema principal até que o véu da noite cobriu o sol

Luciano Marques

A grande lei da causalidade

De quem é esse tempo?

Não seria das flores?

Ou de todas as dores

Cujo triste lamento

Ocultado na alma

Corrói a santa calma

E destrói o momento

Conferindo ao destino

As mazelas do corpo

Como se houvesse porto

Em que todo o ferido

Por sua própria rudeza

Retornasse ao início

Onde todo o vício

Encontraria a pureza?

Não é assim, meu caro

A natureza cobra

O que ato aprova

E a falta de amparo

Porque se desencanta

O estado atual

Vem d’um mundo no qual

Colhe-se o que se planta.

Mesmo que seja incrível

Mas de um ato inocente

O corpo ainda sente

Tal lei irredutível!

….

Luciano Aparecido Marques

Cronos e o desejo

Depois eu faço

Amanhã eu terei tempo

Agora estou alimentando a minha demanda hormonal

Quando eu terminar essa ação tão esquematicamente normal

Eu direi a mim mesmo:

_Que embaraço!

Porque não consigo?

Tal como o discípulo afirmou

Ser difícil fazer aquilo que é preciso em detrimento do que eu quero

Sei o que devo realizar, mas coloco na frente a imediata vontade estéril

Dessa forma me torno quem sou

E não o que preciso.

E assim passa-se o tempo

Jocoso e tenaz, mas maquinalmente sádico

Pois quando termina a aurora do desejo encravado na alma

Ele sai indiferente rumo ao infinito e com toda calma

Nos deixa perdidos no presente trágico

No qual perdemos o momento

Luciano Aparecido Marques

Uma ave.

Sob as nuvens carregadas

De orvalho almiscarado

Voa altiva criatura alada,

Imponente pássaro mascarado!

Será anjo ou querubim?

Difícil saber de fato!

Só sei que passa assim,

Rasgando o véu no espaço!

Ah se essa ave fosse minha!

Não como uma alma engaiolada,

Mas voando, como andorinha,

Voltando por livre arbítrio

A nosso ninho de cambraia.

Respostas?


Todos esses que aí estão
Atravancando meu caminho,
Eles passarão…
Eu passarinho.

Poeminho do contra, Mário Quintana.

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Quem é você?

Não sei responder ao certo, mas eu sei dizer quem você não é.

Não és a dormência que te impuseram;

Não és os muros que construíram ao teu redor;

Não és o medo do invisível!

Não és o sucesso que te prometeram em troca da vitória alheia.

Não és herói, nem vilão.

És apenas humano, o que já é um começo.

Luciano Aparecido Marques

Ela

Na solidão em que disperso

Todos os sentimentos na linha tênue

Daqueles devaneios brilhantes

Apenas contemplados pelos cegos

E loucos Quixotes de Cervantes

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Vejo-te a beijar os antagonistas de Shakespeare

E deles herdar a força e crueldade da mordida

Das hienas, não pardas, mas coloridas

Sua loucura e a delas sob a mesma medida

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Quereria sonhar-te bela e feliz

Mas ao encontro das vírgulas

Dispersas no texto como gatos trepados em muros

Sempre encontro na memória um aposto a explicar-me:

_ A Bela que era uma Fera agora jaz morta

Ao ingerir o próprio veneno da indiferença e do absurdo.

Luciano Aparecido Marques