A discussão em torno da poesia moderna e pós moderna é necessária, uma vez que esta tendência abre novas possibilidades de criação artística e de interpretação.
É comum nos depararmos com questões acerca da poesia moderna no quesito forma e conteúdo. Essa produção literária, ora se nos apresenta com lirismo simples, ora arrojado. Capaz de comportar essa dualidade, a lírica de Manuel Bandeira é consagrada pela crítica com relevo respeitável.
Gênio em sua arte de versejar, Manuel Bandeira conhece a rigidez dos versos e rimas parnasianos e simbolistas, e caminha para o Modernismo como um grande poeta, embora se intitule “poeta menor”.
Abrimos com esse artigo mais uma porta de entrada para a discussão da poesia bandeiriana.
Manuel Bandeira, um poeta de forma e conteúdo.
Manuel Bandeira (1886-1968), nascido em Recife, foi um poeta pluralista não apenas por ter feito parte de mais de uma escola literária, mas por ser contemporâneo ao Modernismo, escola multifacetada desde suas origens. O poeta Carlos Drummond de Andrade comentou a respeito dessa pluralidade:
“Bandeira tinha uma variedade de interesses literários e foi um mestre em todas as formas de poesia. Assim, através de sua poesia, podemos, inclusive, entender melhor o percurso da própria poesia brasileira.” 1
Podemos começar a entender a poesia bandeiriana do ponto de vista formal. O poeta demonstra um grande conhecimento de metrificação, de rimas (ricas, pobres, raras etc.), de ritmo, enfim da poesia e sua forma. Em seu livro Itinerário de Pasárgada2, Manuel Bandeira conceitua termos da poesia, analisa poemas de grandes autores e nos mostra o seu estilo de produzir poesia. Quando analisamos sua obra poética ,do ponto de vista formal, percebemos que ela começa nos moldes parnasianos e simbolistas, movimentos dos quais o poeta é influenciado em seus versos metrificados e caminha até ao modernismo.
Representativo da fase parnasiano- simbolista de Manuel Bandeira é o poema “Desencanto” do seu primeiro livro A Cinza das Horas3, onde o poeta trabalha com versos decassílabos, prática comum aos parnasianos brasileiros.
A fase moderna de Manuel Bandeira inicia-se com o livro Libertinagem, em que o poeta se desvencilha das formas rígidas. Peguemos como exemplo os poemas “Poema Retirado de uma Notícia de Jornal” no qual Bandeira não utiliza pontuação, e o poema “Poética”, no qual o escritor, além de trabalhar com versos livres, ainda tece críticas aos modelos acadêmicos
A temática na poesia bandeiriana.
Do ponto de vista temático, a poesia de Manuel Bandeira tem um caráter universalista, com temas capazes de transcender o tempo e o espaço. Embora seja tratada com temas simples do cotidiano, sua poesia apresenta desde temas existencialistas até brincadeiras que são comuns a todos os seres humanos. Segundo Hênio Tavares em seu livro Teoria Literária4: “versos livres, imagens modeladas de preferência na linguagem cotidiana e interesse pelo vulgar e por temas considerados acadêmica e tradicionalmente anti-poéticos”, são características da poesia modernista.
Os principais temas que permeiam a obra poética bandeiriana são: sublimação do comum, morte, erotismo, incapacidade de realização dos anseios do eu-poético e lembranças da infância. Tratemos, pois, os temas através de tópicos.
- – A sublimação do comum.
O dicionário Aurélio5 nos trás uma boa definição do verbo sublimar. Segundo o dicionário, sublimar é o ato de elevar alguma coisa de um grau inferior a um grau superior dentro da escala de valores morais, intelectuais ou estéticos. Manuel Bandeira é um poeta capaz de sublimar coisas simples, do cotidiano, no mais alto grau de poesia com ótimos valores estéticos.
Citemos o poema “Balada das três mulheres do Sabonete Araxá” do livro Estrela da manhã, poema que foi escrito – segundo o próprio autor revela em seu Itinerário de Pasárgada – com inspiração em um cartaz de sabonete que ele avistou em uma venda. Na terceira estrofe do poema, Manuel Bandeira transforma a imagem das três mulheres em um grau de beleza fora do padrão comum através das metáforas que faz. Observemos:
(…)
Ó brancaranas azedas, Mulatas cor da lua vêm saindo cor de prata
Ou celestes africanas:
(…)
Um outro poema que pode demonstrar o caráter de sublimação do comum na poesia bandeiriana, é o poema “Maçã” do livro Lira dos Cinqüent’anos, vejamos suas segunda e terceira estrofes:
(…)
És vermelha como o amor divino
Dentro de ti em pequenas pevides
Palpita a vida prodigiosa
Infinitamente
(…)
Observemos como o poeta trabalha com metáforas grandiloquentes que nos impressiona no ato da primeira leitura. Uma simples maçã é capaz de carregar uma vermelhidão só comparada ao amor divino, enquanto carrega em suas sementes (pevides) a maravilhosa vida para todo o sempre (infinitamente). Na última estrofe do poema, que vem seguida da estrofe citada acima, o eu lírico nos revela a capacidade do poeta de sublimar a maçã. Observemos:
(…)
E quedas tão simples
Ao lado de um talher
Num quarto pobre de hotel.
Nestes versos a conjunção e tem valor adversativo, que tem como função contrastar a estrofe anterior e demonstrar que a maçã é comum às pessoas, porém na arte do poeta torna-se sublime.
- – Morte.
Manuel Bandeira trata a morte em sua poesia de dois aspectos: aspecto irônico e aspecto trágico. Vejamos a última estrofe de “Pneumotórax” do livro Libertinagem que explicita a ironia do poeta frente à morte:
(…)
_ Então doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
_ Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.
(…)
O diálogo feito entre o eu- poético e o médico tem uma familiaridade comum com o real, porém no último verso a ironia está presente no medicamento indicado pelo médico que ao receitar o tango “argentino” está antecipando a morte do eu- poético, que é inevitável na situação em que ele se encontra.
A morte carrega em si um tema universal, que torna a poesia capaz de ultrapassar as barreiras do tempo e do espaço. Em seu poema “Consoada”, do livro Opus 10, Manuel Bandeira trabalha com o tema referido utilizando um tom mais trágico. Observe a primeira estrofe do poema, atendo-se à dúvida que o eu- poético demonstra frente a morte:
(…)
Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria:
(…)
Outro aspecto trabalhado por Bandeira, ainda na temática da morte, é o preparo que o eu- poético tem frente a ela. Observe os últimos três versos de “Consoada”:
[Quando a Indesejada das gentes chegar]
(…)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.
(…)
Estes versos demonstram que o eu lírico sabe que vai morrer e está preparado para a morte.
1.3– Erotismo.
Outro tema marcante na poesia bandeiriana é o erotismo. Vejamos os exemplos dos trechos abaixo, extraídos dos poemas “Vulgívaga” do livro Carnaval.
(…)
E o cio atroz se me não leva
A valhacoutos de canalhas,
É porque temo pela treva
O fio fino das navalhas
Não posso crer que se conceba
Do amor senão o gozo físico!
O meu amante morreu bêbado,
E meu marido morreu tísico!
(…)
O erotismo marcante em “Vulgívaga” ultrapassa as imagens evocadas até chegar ao limite do desejo sexual, demonstrados pela libido do eu- lírico que almeja estritamente o ato sexual (observado nos dois primeiros versos da primeira estrofe), como um meio de prazer carnal, fato que o aproxima de um animal. Observe essa aproximação no primeiro verso da primeira estrofe acima, representada pela palavra cio.
1.4 – Incapacidade de realização dos anseios do eu- poético.
Há um eu- poético presente na obra de Bandeira que se caracteriza pela incapacidade de realizar seus desejos. Embora esses desejos aos olhos do leitor pareçam comuns, como tomar banho no mar ou andar de bicicleta , para o eu- poético não o são. Este anseio por parte do eu lírico culminará em um dos maiores clássicos de Manuel Bandeira, o poema “Vou me embora pra Pasárgada” do livro Libertinagem, observe sua terceira estrofe:
(…)
E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau de sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d’água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada
(…)
Outro poema que ilustra bem esta idealização bandeiriana é “Testamento” do livro Lira dos Cinqüent’anos, observe sua Segunda estrofe:
(…)
Vi terras da minha terra.
Por outras terras andei.
Mas o que ficou marcado
No meu olhar fatigado
Foram terras que inventei.
(…)
A lembrança da infância no poema “Natal sem Sinos”
A lembrança é um outro tema que permeia a poesia bandeiriana. Ao trabalhar com esse tema, o poeta demonstra saudades de uma infância feliz. Observemos o desenvolvimento desse tema, no poema Natal Sem Sinos do livro Opus 10:
NATAL SEM SINOS
No pátio a noite é sem silêncio
E que é a noite sem o silêncio?
A noite é sem silêncio e no entanto onde os sinos
Do meu Natal sem sinos?
Ah meninos sinos
De quando eu menino!
Sinos da Boa Vista e de Santo Antônio.
Sinos do Poço, do Monteiro e da igrejinha de Boa Viagem.
Outros sinos
Sinos
Quantos sinos!
No noturno pátio
Sem silêncio, ó sinos
De quando eu menino.
Bimbalhai meninos,
Pelos sinos (sinos
Que não ouço, os sinos de
Santa Luzia.
Do poema acima, podemos extrair a seguinte imagem:
Há um pátio, onde a noite não é silenciosa, pois está tumultuada pelas lembranças do eu poético (lembranças de sua infância); ele se pergunta o que é uma noite sem silêncio e evoca a alegria de meninos sinos (agitados, barulhentos), alegria da qual ele fez parte em sua infância; o eu- poético ainda remonta a alguns lugares de sua infância alegre; a alegria evocada no poema é diferente de sua situação atual, pois ela é desprovida de sinos, ou seja, da alegria de sua infância – daí o título “NATAL SEM SINOS” remeter à situação atual do eu lírico, sua fase adulta, que é menos feliz do que a sua infância; ele ainda pede para que alguns meninos bimbalhem (soem sinos) pelos sinos que ele não houve na situação atual, ou seja, sinos de Santa Luzia.
Ao interpretarmos o poema, percebemos que há uma dualidade por parte do eu- poético no que diz respeito à situação do seu Natal atual e o Natal de sua infância, que é lembrada no presente. O Natal atual não tem sinos, ao contrário do infantil que é repleto de sinos.
Podemos dar embasamento na proposição acima através do aspecto formal do poema. A primeira e última estrofes nos remetem à situação atual do eu poético, fato que pode ser observado na primeira estrofe pelo uso do verbo ser no presente do indicativo, na última pelos verbos bimbalhar no imperativo e ouvir no presente do indicativo. A lembrança do eu- poético se dá na terceira estrofe e permeia a quarta e a quinta estrofes, fato observado pelos seguintes usos: do advérbio de tempo quando seguido do substantivo menino e da elisão do verbo ser no pretérito, toda essa construção em forma de interjeição que demonstra saudade.
Essa dualidade – apresentada por Bandeira quando trata do tema infância – observada em “NATAL SEM SINOS” – está presente em diversos poemas de sua obra. Observe a última estrofe do poema “Cotovia” encontrado em Opus 10:
(…)
_ Do mais remoto e perempto
Dos teus dias de criança
Te trouxe a extinta esperança,
Trouxe a perdida alegria.
Nestes versos de “Cotovia” percebemos que o eu- poético recebe da cotovia a lembrança da sua infância alegre, que é também a extinta esperança de voltar a ser criança.
Voltemos ao “Natal sem Sinos”. Nele constatamos que o Natal da infância do eu lírico é mais dinâmico, enquanto o da sua fase adulta é mais estático. Este fato pode ser explicado simplesmente pelos sinos, que representam som e movimento, sem nos esquecer que esses sinos são “meninos sinos”, enquanto a fase adulta é desprovida de movimento e som, fato que leva o eu poético a clamar aos meninos que bimbalhem pelos sinos que ele não houve mais. Ora, se os sinos são meninos e o eu lírico não o é, ele pode estar clamando para que meninos sejam por ele aquilo que ele não pode ser mais, ou seja, criança.
A forma que o poema se nos apresenta é interessante, se o analisarmos de maneira pictórica. A primeira estrofe, representativa da fase adulta do eu é um bloco grande e sólido. A medida que entramos na lembrança do eu- poético, que constitui o miolo do poema, ele se torna mais livre, para logo depois constituir a solidez do início. Esta imagem pictórica nos ajuda a entender a saudade que o eu- poético tem da sua infância. Ele sai da realidade (solidez), imagina a infância (liberdade) e como não poderia deixar de ser, retorna a solidez da sua realidade.
Façamos outro diálogo entre o poema “Natal Sem Sinos” e “Natal 64” do livro Estrela da Tarde, embora este trate apenas do tema saudade, observemos sua última estrofe:
(…)
Então por que neste momento
Me sinto tão amargo assim?
E a saudade me é um tal tormento,
Se estás viva dentro de mim?
O questionamento feito nos versos acima é acerca da amargura que o eu- poético passa por causa da saudade. Ele não entende o porquê da amargura se a saudade está nele. Podemos afirmar que esta amargura advém da incapacidade de viver novamente aquilo de que o eu- poético tem saudade. Assim como no “Natal Sem Sinos” cujo eu- poético é incapaz de ouvir os sinos de Santa Luzia.
A Religiosidade também está presente no poema analisado. Os nomes dos locais que aparecem nele, nos remete a um ambiente Católico devido aos nomes de alguns santos e igrejas. Este fato é importante porque o Natal vivido pelo eu- poético é um Natal Católico- cristão.
Ainda no poema “Natal sem sinos”, percebemos uma musicalidade bem expressiva nos seus versos devido ao uso excessivo de aliterações com a letra s, este som fricativo o torna quase assoprado em alguns trechos, observe: sem silêncio (ó sinos), sem sinos, meninos sinos. Podemos fazer um diálogo desse poema com o poema “Elegia de Verão” também de Opus 10, observemos sua segunda estrofe:
(…)
O sol é grande. Zinem as cigarras
Em Laranjeiras.
Zinem as cigarras: zino, zino, zino…
Como se fossem as mesmas
Que eu ouvi menino.
(…)
Natal sem Sinos é um poema que demonstra a saudade de uma infância feliz e a incapacidade de se retornar a ela quando na fase adulta. Devido a essa universalidade que esse tema carrega, temos aqui uma expressão poética de grande qualidade e valor.
Bibliografia.
1 Trecho extraído do livro: Manuel Bandeira. MOURA, Murilo Marcondes de. São Paulo: Publifolha, 2001. (Série Folha explica), pg. 11.
2 Itinerário de Pasárgada. BANDEIRA, Manuel. 3° edição. – Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira [Brasília]: INL, 1984.
3 Estrela da Vida Inteira. BANDEIRA, Manuel. 20. Ed. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
4 Teoria Literária. TAVARES, Hênio Último da Cunha. 12. Ed. – Belo Horizonte, MG: Itatiaia, 2002.
5 Dicionário Aurélio Eletrônico (Baseado no Novo Dicionário da Língua Portuguesa). FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda e colaboradores. Nova Fronteira, 2004.
Enciclopédia Digital Encarta. Microsoft, 2000.